27 de out. de 2007

Mutum

Não é preciso dizer nada

Mutum dispensa o falatório, valoriza as atuações de iniciantes e faz incríveis imagens no sertão

MARIANA PASINI
ESPECIAL PARA O FINO DA MOSTRA


Assim como a história de Manuelzão e Miguilim, do livro Campo Geral, de João Guimarães Rosa, Mutum é todo contado pelo ponto de vista de uma criança. A obra do escritor mineiro serve de base para o filme, numa difícil tarefa de adaptação para o cinema que, no entanto, é desempenhada de forma bela e poética por Sandra Kogut. A diretora, autora de documentários intimistas como Um Passaporte Húngaro (2001) e Lá e Cá (1995), aventura-se no campo da ficção, conseguindo um resultado coeso e admirável.

A cidade que dá nome ao longa é característica dos romances de Guimarães Rosa: remota, perdida no meio do sertão mineiro, vítima da natureza implacável, que castiga os moradores de pouca fala. A escolha da diretora de usar intérpretes que vieram desse meio confere mais autenticidade ao filme: os atores estreantes de Mutum foram selecionados em João Pessoa, na Paraíba. Tiago da Silva Maris interpreta o menino de mesmo nome cuja sofrida e precoce transformação em adulto é o tema principal do longa.

Evoluindo no ritmo próprio do sertão, a história de Tiago fascina pela simplicidade e pureza com que é contada. Brincadeiras inocentes e alegres se misturam a conflitos sérios. Tentando suportar as dificuldades da vida no sertão, rumores sobre o possível adultério da mãe, o comportamento intolerante e violento do pai, o garoto é forçado a amadurecer e conviver com situações que ainda lhe são estranhas. Os problemas apareceram cedo demais, e Tiago tem de aprender a lidar com eles, mesmo que não esteja pronto.

Repletas de um realismo por vezes intrigante, as cenas de Mutum são louváveis. Um exemplo é a passagem em que os pais de Tiago discutem e partem para uma briga séria, chegam a gritar um com o outro e a derrubar pratos e copos, produzindo um barulho assustador para uma criança de 10 anos. A câmera enquadra o rosto de Tiago, mostrando as lágrimas que correm no seu rosto, e o som caótico da briga é a única evidência de um conflito. A cena não é retratada dessa forma à toa: o foco do filme são mais as reações e os sentimentos de alguém incapaz de compreender perfeitamente o que se passa à sua volta do que o ambiente em que ele vive.


A morte também entra no cotidiano do menino, mas Kogut escolhe mostrá-la de forma indireta: pela dor dos personagens. Por essa opção corajosa chega-se a episódios que dissimulam seu drama de maneira sutil, como na cena em que a avó de Tiago retira os lençóis e o colchão em que Felipe, irmão de Tiago, falecera.

Mutum também pode significar "mudo" – o título do filme traduz os silêncios de que o universo de Tiago também é feito. Ele tem de enfrentar sozinho um lugar cheio de intrigas, passando por experiências que consolidarão o caráter que irá formar. Ao mesmo tempo em que decifra esse lugar, lhe será dada a oportunidade de deixá-lo por um médico que lhe empresta seus óculos, com os quais ele enxerga muito melhor – a metáfora presente na passagem é gritante, talvez em demasia. Num final emblemático, a decisão de Tiago evidencia a maturidade que o menino conseguiu alcançar.

A realidade é expressa através das expressões e olhares dos personagens, e não por meio de diálogos ou falas, que são escassas. Fugindo de estéticas antiquadas e sentimentalistas, Kogut trata do conflito entre a inocência pueril, cheia de esperanças e desejos, e uma realidade esmagadora que reprime e confunde.

O filme venceu o prêmio oficial do júri no Festival do Rio desse ano e foi eleito o representante brasileiro na Quinzena dos Diretores do Festival de Cannes. Tratando do sertão de forma simples, sem glamour novelesco, eleição de heróis ou a separação nítida entre bem e mal, Mutum tem beleza própria.

MUTUM
(Mutum, Brasil)
Direção: Sandra Kogut
Competição | 2006 | 95 min

24/10 | 20:30 - Cine Bombril 1
25/10 | 15:10 - Espaço Unibanco de Cinema 3
28/10 | 15:30 - Cine Bombril 2

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