19 de out. de 2007

Império dos Sonhos

STEFANIE GASPAR
O FINO DA MOSTRA


INLAND EMPIRE (em maiúsculas mesmo) é o primeiro longa-metragem de David Lynch filmado em formato digital, segundo ele uma experiência libertadora. De fato, o que se vê em INLAND EMPIRE é liberdade pura: de criação, de associação de imagens, de significados. Ao mesmo tempo em que David Lynch utiliza alusões a seu próprio léxico cinematográfico (frases que não fazem sentido inicialmente, alucinações intermináveis e até mesmo várias cenas de sua web-série Rabbits) ele não se perde em si mesmo, não se esgota – Lynch não está preocupado com fórmulas, nem mesmo com as que criou.

A história gira em torno de Nikki (Laura Dern), uma atriz que há muito tempo não tem um bom papel e que finalmente consegue ser chamada para o filme On High in Blue Tomorrows. Entretanto, Nikki começa a confundir sua vida com a de Sue, sua personagem, o que desencadeia o início do fluxo do inconsciente e o fim da narrativa linear de INLAND EMPIRE.

Não existe diferenciação visível entre sonho, memória, alucinação e realidade. Um sonho não é menos real que o nosso dia-a-dia, a memória é uma maneira de reconstruir o passado e compreender o presente e a alucinação solta os freios do inconsciente. Em suma, não existem barreiras entre o imaginário e a realidade. Tudo é real. Nenhuma dessas "categorias" do pensamento, das divisões entre o real e o construído são estanques, principalmente nos filmes de Lynch. Uma alucinação é real na medida em que faz parte não só da própria natureza não racional do ser humano como de uma sociedade saturada de imagens que são apenas simulacros da realidade.

O filme também é sobre o ato de fazer cinema – como se o filme e suas pulsões derivassem de uma força motriz caótica, na qual a realidade não organiza as imagens, dando origem às alucinações e sonhos que são a matéria prima do cinema, principalmente do de David Lynch. Fazer cinema é reunir fragmentos desse “inconsciente”, desses instintos sensoriais e, ao torná-los puramente imagéticos, transformar a película em uma força além da arte.


Quando Nikki agoniza em meio às imagens alucinantes e não sabe mais quem ela é, sua vida passa a ser uma alucinação contínua que, entretanto, torna-se real a partir da fusão entre Nikki e Sue. O método Stanislawski – o autor que incorpora o personagem, tão popular em Hollywood - chega ao extremo e mergulha no horror com a experiência de Nikki. Se o sonho, a alucinação e a memória são tão reais como qualquer outra coisa, como ordenar a realidade e torna-la inteligível?

"Um garotinho saiu de casa para brincar. Quando ele abriu a porta, ele viu o mundo. Mas quando passou pela porta criou-se um reflexo, e o mal surgiu. E o mal seguiu o garotinho". Com estas palavras, a vizinha de Nikki não só prevê muito do que acontecerá durante as filmagens de On High in Blue Tomorrows como suscita muitas questões que permeiam todo o drama de Nikki. O garotinho e seu reflexo. O homem e seu duplo. Esse duplo funcionando em dois níveis: a origem do mal é a origem do ser humano (ao se deparar com o mundo, o garotinho torna-se humano. E ao ver seu reflexo descobre o mal em si) e o duplo como princípio de operações que destroem a separação entre imaginário e real. Em suma, descobrir-se a si mesmo através do reconhecimento do duplo (que resulta de um exercício de alucinação).

Nikki descobre a essência do duplo a partir de sua fusão com Sue, quando começam suas alucinações e ela perde identidade: afinal, quem é ela? É a personagem ou o “eu” anterior ao filme? Quando, no final do filme, uma música emotiva toca e Nikki olha para a frente, finalmente seu olhar não é mais de medo diante de suas alucinações: é um semblante calmo, como se, finalmente, alucinação, sonho e realidade se reconciliassem. Tudo a partir do encontro com o outro (também seu duplo/espectador), a garota que chora assistindo Nikki pela TV e que sofre pela sua história sofrida (será a história de Nikki, de Sue, ou de ambas?). É como se, em um estágio final da experiência cinematográfica, a imagem (e, portanto, o cinema) finalmente se encontrasse com o espectador, e não existisse mais nenhuma distância entre eles. Uma simbiose total.

A liberdade total das imagens e da experiência cinematográfica que é INLAND EMPIRE, entretanto, traz um efeito inerente a quase todos os filmes de David Lynch, mas que aqui se acentua: o horror. É impossível ficar alheio às imagens torturantes e fortes, que causam uma sensação dolorosa, não voyerista, mas de co-sofrimento, de imersão na imagem. Não participar dessa agonia é estar totalmente alheio ao filme.

INLAND EMPIRE compartilha muitas características com o último longa metragem de David Lynch, Mulholland Dr. (Cidade dos Sonhos). Ambos começam com narrativas aparentemente lineares, até que há um ponto de conflito que desestrutura a história e tudo começa a se misturar e fragmentar. As fronteiras entre realidade e inconsciente se dissolvem, o que permite múltiplas sensações e interpretações. E é essa a maior força de INLAND EMPIRE, além da complexidade e liberdade de sua “narrativa”: as sensações.

Tentar entender o filme de acordo com os parâmetros tradicionais de enredo e narrativa é se perder totalmente, é procurar rotular e encaixar INLAND EMPIRE em uma categoria que não vai existir. Ir ao cinema para ver esse filme é, gostando o espectador ou não dos filmes de David Lynch, uma experiência ímpar, intrigante e reveladora. É quase como se a verdadeira função do cinema – a de ser apenas catarse e provocação – envolvesse o espectador e nunca mais o abandonasse.



IMPÉRIO DOS SONHOS
(INLAND EMPIRE, França/Polônia/EUA)
Direção: David Lynch
Perspectiva | 2006 | 197 min

19/10 | 22:50 – iG Cine
21/10 | 12:00 – Cine Bombril 1
22/10 | 20:10 – Unibanco Arteplex 1

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